Tu praticas Karate. Há alguns
anos. Começaste por pura brincadeira… “ vou experimentar… preciso de fazer
exercício”, dizias tu. Ao fim de alguns
meses já sabias que o exercício era apenas uma das satisfações que tiravas da
prática desta nobre arte. Mas era mais. Muito mais. Acabas por perceber que o
karate te está a transformar. Ao fim de alguns anos já não és o mesmo. Estás
transformado num ser com uma mente mais aberta e receptiva. Sabes que, para
dominar uma técnica tens de praticar afincadamente… todos os dias… física e
mentalmente. Descobres que o teu cérebro tem sempre presente “a arte”. Dás
contigo a fazer movimentos das katas com as mãos… as pessoas olham-te curiosas
e só aí te dás conta que estás a treinar… com a mente em pleno contacto com o
karate. Quando podes andar, corres e ao correr desafias-te a ti próprio. As
graduações sucedem-se sem te dares conta. Começaram por ser uma das tuas metas
mas já não são… assumes que as graduações estabelecidas por ti são aquelas
conquistadas com a aquisição de uma nova técnica ou com o aperfeiçoamento de
uma outra, mais “teimosa”. Estás agora num momento da tua vida em que observas
os mestres com uma visão mais apurada… tentas perceber onde está o ingrediente
que torna o mestre naquilo que ele é para ti: perfeito. E anseias por lá chegar
mas tens consciência do tempo e acalmas a tua ânsia. Paciência foi outra das
tuas conquistas, porque sabes que o tempo é que vai consolidar a tua arte. O
movimento desajeitado que iniciaste e que agora te dá prazer executar é como se
o teu corpo obedecesse agora a uma força exterior. A acção… a reacção… a
rapidez de execução e a técnica fluida são agora os teus mestres. Tens de
treinar…sabes que tens. Sabes que só assim evoluis. Observas agora os mais
jovens que anseiam aprender. Reconheces neles o teu ímpeto e a tua ânsia, agora
acalmados pela experiência e pelo treino mental. Lembras-te com alguma saudade
do tempo em que, como uma esponja, absorvias tudo o que vias e ouvias para
poderes avançar rapidamente. Contudo tens agora a satisfação de constatar que
amadureceste e que o tempo, agora, não significa o mesmo que para aqueles
jovens. Olhas os seus rostos risonhos quando lhes colocas à cintura o símbolo
de mais uma graduação… e sorris. Lembras-te da tua própria satisfação quando
ultrapassaste um obstáculo e o teu mestre te considerou apto para a graduação
seguinte. Isso agora não importa. O sistema precisa das graduações…tu não.
Graduas-te todos os dias quando um aluno te faz uma pergunta para a qual não
encontras resposta imediata, e te obriga a investigar. Graduas-te também quando
um aluno teu é reconhecido pela sua postura e pela sua técnica. Graduas-te
quando um aluno que se inicia criança, continua contigo como adulto. E a Arte?
Essa está sempre contigo. Sempre! Quando estás sozinho e, mentalmente organizas
os treinos. Quando percebes e reconheces a tua insignificância no percurso do
karate. E admiras a reciprocidade que existe na prática: Quando dás o teu
máximo, recebes o teu máximo… pode demorar… mas chegarás lá, e quando chegares,
a satisfação que recebes é a recompensa máxima. Não existe arte mais honesta na
recompensa pessoal… não para ti.
Vives para o Karate… não vives do
karate nem no karate. Para estes dois últimos, a arte não existe. Estás agora a
fluir no “Do”. Não te preocupas com o tempo nem com os pequenos fracassos que
outrora te perturbavam. Sabes agora que a persistência é o caminho e aprendeste
a contornar obstáculos desenvolvendo o teu próprio trabalho, consolidado pela
tua “teimosia”. Percebes agora que passaram mais de vinte anos. Lembras-te do
teu início. Vês nos teus alunos a tua
irreverência e a tua impaciência, e sentes-te grato. Dizes-lhes que devem ter
paciência, e treinar. Que devem questionar. Que devem inovar. Que devem elevar
todos os valores que caracterizam o homem integro e que devem preservar os
valores da Arte. Dizes-lhes também que o tempo os recompensará… porque sabes
que sim, é verdade. Eles ainda não o percebem mas se forem afortunados como tu
as portas do conhecimento abrir-se-ão mas o caminho que revelam… é longo. E
vem-te à memória aquilo que disseste quando te iniciaste: “vou
experimentar…preciso fazer exercício” e chegas à conclusão o exercício é afinal
agora… a tua vida. E sentes-te grato. Reconheces que és agora uma pessoa
completamente diferente…evoluída. A tua mente é viva e o teu corpo recusa a
consciência da idade que agora ostentas. Reconheces nesta característica mais
uma recompensa do treino, e sentes-te novamente…grato. Percebes também agora,
que pertences a um grupo de amigos que partilham a tua paixão e que fazem parte
de ti. E não te dás conta da forma vibrante como conversas com eles sobre o
karate. – História e histórias fazem agora parte da tua vida e desenrolam-se na
tua mente como um filme cheio de personagens, onde também, como no cinema, há
bons e maus. Mas consegues reconhecer que os maus também deixaram marca na tua
personalidade e nem sempre foi negativa. E percebes que o equilíbrio é isto
mesmo. E reconheces honestamente que foste “construído” com essa matéria. E
percebes que aquilo a que alguns chamam destino é afinal, um conjunto de
episódios que se somam e se aglutinam formando aquilo que és. A tua vida é
isso. E se o desejares e te comprometeres contigo próprio farás da tua vida o
que quiseres. Terás obstáculos certamente mas não os tiveste já? E não os
ultrapassaste? São quase trinta anos agora. Tentas olhar para trás mas não vês
já o que vias. Vês um caminho longo, já percorrido, com montanhas e vales mas
dás contigo a olhar agora para a frente. O caminho é igualmente longo e
tortuoso. E não te preocupas com a idade. Avanças com a mesma ânsia controlada
que te conduziu até aqui. A tua mente continua activamente receptiva e guardas
a informação que recebes no teu treino, agora bem catalogada e armazenada,
porque sabes que precisas de a encontrar quando fizeres o teu próprio trabalho.
Adquiriste a capacidade de “criar” mas não queres guardar a tua criação só para
ti. Partilhas com alunos e com outros karatekas e apercebes-te que eles estão a
fazer o mesmo… e sorris. Sorris porque percebes agora que o karate é um ser
vivo alimentado pelo nosso treino, que se expande e desenvolve cativando novas
mentes. E percebes que a paixão pela Arte é a mesma que tinhas à 10, 20 anos e
admiras-te por isso. Não percebes que estás impregnado e que a tua vida é e
será sempre Karate.